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REGINA DE MIGUELLAPIDARIOGALERÍA MAISTERRAVALBUENA Hospital 8 28012 Madrid 17 MAI - 28 AGO 2024
A galeria Maisterravalbuena, em Madrid, apresenta a exposição Lapidario de Regina de Miguel até 28 de Agosto de 2024. A artista espanhola, nascida em Málaga em 1977, reside agora em Berlim e diz, a propósito da exposição, que esta é um “território de territórios”, um espaço onde “humanos, animais, microorganismos, pedras e estratos geológicos se conectam de forma tentacular”. Para que tal aconteça, a artista faz uso da ficção científica como ferramenta especulativa, tendo em vista um diálogo entre a alteridade dos vivos e dos não vivos e o caminho para que este se reúna com o inimaginável. * Lapidário, mapa, oferenda, portal, ex-voto; todas estas são palavras usadas para nomear os trabalhos de Regina presentes nesta exposição. Este vocabulário é ilustrativo da ambiência da exposição: entramos num lugar de culto. Não será à primeira vista evidente quais serão os devotos habitantes deste lugar; quais serão as perspectivas que nos são apresentadas (e não representadas); e quais as posturas éticas e políticas que se denotam no percurso da exposição e na ligação dos discursos destas obras. É, no entanto, evidente a onda tonal que percorre a exposição, que atravessa as obras e que por extensão nos atravessa a nós visitantes, assim como a una sugestão táctil vinda das peças apresentadas: metal, cozimentos, linha, aguarela, guache, madeira, pedras preciosas. A tecitura deste discurso de reunião do político e do oracular aparece-nos a partir de longos e laboriosos trabalhos das várias entidades; do tempo, do vento, dos trabalhos manuais, e dos trabalhos equiparáveis aos manuais dos seres vivos que não possuem mãos ou mesmo membros e que ainda assim laboram e persistem em práticas de construção proto-arquitectónica, comunal e funcional, e também estética - apesar de, enfim, todos estes termos possam apenas ser colocados como analogia para que a nossa compreensão, humana e limitada, possa reunir sobre eles algum entendimento.
Regina de Miguel Lapidario 3, 2024 (detalhe). Acrílico sobre madeira. Cortesia da artista e Maisterravalbuena, Madrid. © Roberto Ruiz
Prendo-me ao que de mais palpável me fica desta visita; as palavras escritas da autora, os nomes, as matérias e os labores, por falta de Verbo para me referir ao que acontece nela. Este pasmar - entre o enamoramento, o impacto, a dúvida, a crença e o assoberbamento - é traço característico de qualquer catedral; a compreensão última de que o sagrado atravessa determinados lugares, que estes mesmos lugares nos servem para prestar reverência ou, seja o melhor caso, prestar respeito às entidades supra ou infra que nos veiculam e que, à falta de melhor via, nos dirigimos em silêncio ou em cânticos partilhados com semelhantes ou dissemelhantes vozes. Espaços em que nos reunimos para que se torne evidente a presença e a vida, e entidades a quem nos dirigimos com uma fé afásica. Naturalmente que, dadas as minhas limitações também elas particularmente humanas, me auxilio de generalizações abusivas, nascidas da minha educação e vivência religiosa e espiritual, e o caminho pessoal que fui traçando entre o desprendimento das garras institucionais, das guerras e dos compromissos com o que está para além de mim estabelecido e cristalizado, para compreender fé enquanto lato fenómeno de relacionamento, pautado por normas éticas de conduta, por gestos rituais formalizados não pela lei, mas pela prática. Aqui, em Lapidario, este pasmo a que me refiro, vem junto desta sensação de que o espaço de exposição e que esta mesma exposição retornou a arte a um estado sacralizado, muito embora inortodoxo. Vem juntamente com esta afasia que nos assola face a um pasmo de fé (e não, necessariamente, um salto) aqui marcada pela compreensão da grandeza da intensidade da vida, pela magnificência de uma visão plural, pela pequeneza de todas as coisas que reunidas formam uma unidade de dimensões incalculáveis, pelo maior-que-nós que, destruindo a cristalização da nossa individualidade, nos reúne novamente com o indivíduo que somos na soma total. Humanas incongruências à parte, Lapidario faz-me viver a aristotélica sentença, de que o todo é maior do que a soma de todas as partes.
Regina de Miguel, Portal, 2024 (detalhe). Pintura acrílica sobre tecido bordado à mão. Cortesia da artista e Maisterravalbuena, Madrid. © Roberto Ruiz
Enfim, recorro e repito afinadas e consonantes palavras esperando que elas sirvam como âncoras, para que possa continuar no texto apesar da afasia. Não creio que elas sirvam a Lapidario, pelo que me escudo de descrições das imagens com que Regina nos saúda. Determinadas palavras, apesar do seu forte significado e muitas vezes carregando a tonalidade e sonoridade certa, têm vindo a ser reféns de despersonalizadas estéticas veiculadas nas ondas que o cenário da arte contemporânea navega. E tudo bem, temos aceitado que assim é. A linguagem é força e fraqueza; ferramenta institucionalizada de distribuição de poderes e arma de luta para reivindicações de outras distribuições de poderes, tais como as que em Lapidario acontecem, de forma delicada e compreensiva. Isto, para chegar ao momento em que digo que, aqui, e no que concerne à ligação entre ver-ler-entender, Lapidario, é atravessada por esta onda modal, genérica e ligeiramente bacoca, mas que se torna evidente, na capacidade de causar pasmo, que não é arrastada por ela. Lapidario dá-nos o chão da investigação e proposições de comunalidade em que Regina tem vindo a investir tempo e dedicação, criando as coisas que remexem paradigmas sonhando visões impossíveis, das quais espero que o sopro de que delas nos chegam sirva para reformular arquitecturas e atingir a cinética científica que nos cabe tão bem, a nós, limitados humanos.
* Interpretação e tradução livre da citação das palavras de Regina de Miguel presentes na folha de sala da exposição Lapidario.
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