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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Vista geral da exposição Diáfano © Maria Leonardo Cabrita


Vista geral da exposição Diáfano © Maria Leonardo Cabrita


avant et à démesure, Juliana Matsumura, 2023 © Maria Leonardo Cabrita


Vista geral da exposição Diáfano © Maria Leonardo Cabrita


série Fulgor, Juliana Matsumura, 2022-2023 © Maria Leonardo Cabrita


Fulgor #9, Juliana Matsumura, 2023 © Maria Leonardo Cabrita


Fulgor #7, Juliana Matsumura, 2022 © Maria Leonardo Cabrita


série The Remnant III, Juliana Matsumura, 2017 © Maria Leonardo Cabrita


Vista geral da exposição Diáfano © Maria Leonardo Cabrita

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ARQUIVO:


JULIANA MATSUMURA

DIÁFANO




ATELIER CONCORDE
Rua Leite de Vasconcelos 43A
1170 Lisboa

09 MAR - 30 MAR 2023


 

 

 

Se queremos sair de um campo onde o real é o oposto do aparente, a verdade o oposto da ilusão, temos de sair da dualidade. Temos de admitir que participamos de vários mundos que funcionam diferentemente e para os quais a verdade é diferente. As acções e decisões do nosso quotidiano não decorrem inteiramente da ciência ou da lógica, mas sim de afecções que não são menos verdadeiras — as verdades do amor ou as da arte não vêm por experimentação mas por aproximação, inspiração, dom. Aí, a oposição sensível/ inteligível deixa de fazer sentido. O sensível é o inteligível e vice versa. 

 

Silvina Rodrigues Lopes

 

 

Primeiro é o som — antes mesmo da cor. O som confirma de olhos fechados a existência deste espaço. Espaço Outro, para o qual as pálpebras se abrem como pétalas — mundo inteiro e interior.  É agora a sua textura, o teu toque; o toque do lápis de cor, corpo sobre o papel — pele outra. Empresta-lhe as tonalidades aveludadas das pálpebras fechadas, abertas para o centro da flor; de tudo — Vemos porque o centro é polinucleado; habitamos o multiverso. E, por isso, há sempre quem nos veja; quem nos pressione [1] e pressinta. O som é escavação-fricção; do lápis no interior da concha ao encontro da sua exterioridade. “O espaço habitado transcende o espaço geométrico” [2] — Habitar é, enquanto experiência, sinónimo de Ser, e o preto de outrora [3] uma semente no interior da flor do fogo, cujas pétalas são todas as cores. A semente germinou fulgurantemente e a Juliana mostra-nos em Diáfano as suas verdadeiras cores

Não é um trabalho [4] é um labor no interior da concha. E o labor interior é o derradeiro labor da liberdade — o de tornar-se si mesmo. Sabem-no bem alguns moluscos; para tornar claro o seu interior, inventaram véus de nácar, diáfanos — trans-lúcidos. É, portanto, o labor da maturidade; a criação a partir de materiais contrários, ou das próprias contrariedades da vida. Numa partilha anterior a esta exposição, e com ela tornada pública, a Juliana falou-me de um decisivo porém pontual retorno à sua casa; a da família de origem no Brasil, em particular, a desorientação sentida no seu quarto, desta feita reconfigurado e ao qual fora atribuída uma nova função. É neste mesmo quarto, e por-ventura em virtude de se ter sentido aprisionada, que inicia uma nova série de desenhos a lápis de cor: Fulgor. Lembro-me por isso das seguintes palavras de Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo: “O fogo e o calor fornecem meios de explicação nos mais diversos campos, pois facultam-nos o ensejo de recordar coisas imorredouras, experiências pessoais simples e decisivas.” [5]

Os lápis de cor aconteceram-lhe como o material do seu Possível. O seu Fulgor é, neste sentido, frugal. Refiro-me a essa frugalidade — ou até mesmo elegância — que decorre de uma privação de meios tornada escolha, via pela qual se redescobre o essencial. E, no essencial, o arrebatamento da e-terna luz diáfana — a  luz do autoacolhimento, da mais profunda intimidade desdobrada em cada olhar que se dá a partir desse mesmo lugar íntimo, o do habitar, onde reverbera o Ser. Esta não é, por isso, uma luz direta; atente-se agora às seguintes palavras da curadora Andreia César: " [as obras de] Juliana Matsumura propõem o despertar de um eco sensível no nosso corpo, quente, resplandecente e expansivo, que neste seu propagar do fora para dentro e do dentro para fora, devolve luz ao universo". 

Por razões excêntricas ao texto, pelo que poupo o leitor de explicações que não as que possam contribuir para o seu sentido, encontro-me no momento em que o escrevo a reler, pela terceira vez, Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke. Leio porém uma edição de 1961 [6], com prefácio da poeta brasileira Cecília Meireles. No decurso da leitura, uso um motor de busca da internet para procurar informação complementar sobre aquela edição e o algoritmo, porque já havia procurado mais informação sobre a exposição Diáfano, conduz-me até ao poema de Manuel Bandeira, dito de Improviso, dedicado a Cecília Meireles — “Cecília, és como ar, diáfana”.  

O poema e as Cartas, numa constelação favorecida pelo algoritmo, todavia incomputável, porque da ordem do Ser, tratam agora de me informar um pouco mais sobre aquilo que no labor artístico da Juliana é, também, ressonante em mim. Logo na primeira carta, Rilke exorta o jovem poeta a ser simples, a fazer do dom do quotidiano a sua matéria-prima, “a relatar com íntima e humilde sinceridade”, utilizando para tal “as imagens dos seus sonhos e os objetos das suas lembranças”. [7] E, adverte: 

 

Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza nem lugar mesquinho e indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os ruídos do mundo de chegar aos seus ouvidos, não lhe ficaria sempre sua infância, essa esplêndida e régia riqueza, esse tesouro de recordações? Volte a atenção para ela. Procure soerguer as sensações submersas desse longínquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre o lusco e o fusco diante o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar. [8]

 

O vestígio sonoro deixado pela palavra citada lusco, faz-me regressar aos moluscos, e ao acontecer diáfano das suas habitações. No poema, Manuel Bandeira refere porém:  “Cecília, és libérrima e exacta / Como a concha / Mas a concha é excessiva matéria / E a matéria mata”. Sinto que a luz diáfana dos desenhos da Juliana chega-nos, por um lado, dessa libertação de matéria; o traço do lápis de cor deixa um rastro de pequenas linhas paralelas, que por sua vez formam faixas horizontais. Como se se tratasse, respetivamente, da contagem dos dias e meses feita por um prisioneiro, porém arriscando simultaneamente nessa contagem escavar a parede, para da matéria se libertar — Por um excesso de dom, i.e., pela via da abundância e não da escassez, a falta de liberdade do prisioneiro. Por outro lado, como na prisão referida por Rilke, a Juliana mostra-nos — e sem qualquer exibicionismo — como é artista o bastante para convocar essa “régia riqueza” que é a infância.  

Que diremos a isto, diante de tantas propostas de grandiosidade; de tamanha desproporção entre produção, meios e mensagem, onde a elegância, que contém em si mesma a possibilidade acolhimento, se confunde inúmeras vezes com arrogância, exibicionismo e uma exclusividade que apenas exclui, i.e., que nos propõe ficarmos fora da nossa própria casa? Reler as Cartas de Rilke — “Ah…sim, já li há muito” — dir-se-á — é preciso. E que formas fazem a sua aparição através destes simples e silenciosos desenhos e monotipias? Uma flor, uma chama, um pássaro, uma vulva, um falo, um seio…E até uma concha e/ou asa de abelha, como no poema de Manuel Bandeira. Será? Sim, na medida de uma “eterna volúpia” por todos os seres participada. Detenhamo-nos nas seguintes palavras de Rilke, na sua quarta carta dirigida a Franz Xaver Kappus:  

 

A criação intelectual, com efeito, provém também da criação carnal. É da mesma essência; é apenas uma repetição mais silenciosa, enevoada e eterna da volúpia do corpo. “A ideia de ser criador, de gerar, de moldar” não é nada sem sua grande e perpétua confirmação na vida; nada sem o consenso mil vezes repetido das coisas e dos animais. Seu gozo não é tão indescritivelmente belo e rico senão porque está cheio de reminiscências herdadas da geração e parte de milhões de seres. Numa ideia criadora revivem mil noites de amor esquecidas que a enchem de altivez e altitude. Aqueles que se juntam à noite e se entrelaçam num baloiçar de volúpia, executam obra grave, reunindo doçuras, profundezas e forças para a canção de um poeta vindouro que há de surgir para dizer indizíveis prazeres. Eles estão evocando o futuro; mesmo que estejam enganados, que se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo; um homem novo se há de erguer. [9]

 

A propósito de avant et à démesure, um conjunto de monotipias sobre papel, e portanto uma vez mais um dentro que é um fora e vice-versa; e, ainda no jogo de polaridades suspensas, que não apenas pela linguagem, a Juliana faz-me reparar nas pequenas pedras-pomes que tencionam as pétalas — assim lhe chamo, ou chamas . São um símbolo desse lugar, nas profundezas, de onde por-ventura  chegam “forças para a canção de um poeta vindouro”, como refere Rilke. Certo é, como mo recorda, que esta matéria, a primeira a emergir do interior da Terra, parece perder no seu trajeto todo o seu peso. E, recordo, o seu uso corrente é, como os lápis de cor de Fulgor, a fricção —  com a fricção, a acelaração do aconte-Ser do fogo, esse que não nos pode ser roubado, se não por distração, pois é excesso de dom; desdobramento pelo desejo do Ser. Os deuses das grandes produções, porém, não amam…no dizer de Carl Jung, ‘onde há amor não existe necessidade de poder’, e vice-versa. Sobre fricção, diz-nos ainda Gaston Bachelard: 

 

Em primeiro lugar, temos de reconhecer que a fricção é uma experiência muito sexualizada. Não teremos dificuldade em nos convencermos disso ao consultarmos os documentos psicológicos reunidos pela psicanálise clássica. Em segundo lugar, se quiséssemos sistematizar as indicações de uma psicanálise especial das impressões calorígenas, ficaremos convencidos de que a tentativa objectiva de produzir o fogo através da fricção é sugerida por experiências absolutamente íntimas. Seja como for, é neste campo que o circuito se revela mais curto entre o fenómeno do fogo e a sua reprodução. O amor é a primeira hipótese científica para a reprodução objectiva do fogo. Prometeu é um amante vigoroso, mais do que um filósofo inteligente, e a vingança dos deuses constitui uma vingança de ciúme. [10]

 

A Juliana é também como Prometeu uma titã, porém roubou a si mesma a cor; e, mais do que nunca, sabe agora de cor (leia-se cór). E quanto ao castigo dos deuses? Talvez seja poupada; andam demasiado distraídos com superficialidades...

 

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Juliana Matsumura

Formou-se em Desenho no Ar.Co, tendo frequentado a Universidade de São Paulo e Universidade de Lisboa. Participou do laboratório de artistas do Nowhere Lisboa entre 2019 e 2020 e concluiu o Curso de Artes Visuais da FLAD (Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento) em 2022. Participou de diversas exposições coletivas e individuais principalmente em Portugal e no Brasil. Recentemente foi apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian com o projeto de residência intitulado "Kawa-Kami", desenvolvido no Casarão do Chá (São Paulo) em 2022.

 

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Notas:

[1] Cf. César Bárrio in Rituales del imaginário. Rememoro as seguintes palavras do pintor:  “[…] quanto más peso produces al objeto, mas levedad produces en él, lejos e cerca se confunden, cuando la materia, consciente de sí mesma, derrama su brillo”. 

[2] Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 92. 

[3] Referência à novidade do aparecimento da cor no trabalho da Juliana Matsumura, mencionada pela curadora Andreia César, na folha de sala da exposição Diáfano. 

[4] Pensa-se aqui trabalho, e por isso do mesmo nos desviamos, a partir da origem da palavra no latim; i. e., de tripalium, um instrumento de tortura, e por conseguinte, referente também a uma condição de escravatura. 

[5] Gaston Bachelard, A Psicanálise do Fogo, Lisboa, Litoral, 1989, p. 13.

[6] Rainer Maria Rilke, Cartas a um Jovem Poeta: A Canção de Amor e Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke, Rio de Janeiro, Pôrto Alegre, São Paulo, Globo, 1961. 

[7] Ibid, p. 23,

[8] Idem. p. 23, 24

[9] Ibid, p. 39, 40.

[10] Op. cit. Gaston Bachalard, 1989, p. 29, 30. 

 
  

 



MADALENA FOLGADO