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TIAGO BAPTISTATHE TALE![]() RIALTO6 Rua Conde Redondo 6, 1 andar 1150-105 Lisboa 16 SET - 16 DEZ 2022 ![]() Coreografia da Lentidão![]()
"Tenho mãos para te colher, timo minúsculo dos meus sonhos, alecrim de minha extrema palidez" André Breton
A nossa cultura, que mitifica a eficácia e o utilitarismo, cancelou há muito o valor da espera. Mas é nessa espera que, possivelmente, emerge em nós algo que, na pressa e na emergência, não tinha podido despontar. Abre-se um espaço para o que nasce de novo, para o que demora. E demorar é morar mais. Abre-se um espaço para a verdadeira escuta. Em “TheTale”, de Tiago Baptista, há uma expansão do universo da espera e da desaceleração do tempo. Há quase uma suspensão — para a podermos olhar. O artista propõe-se a abordar esse mundo demorado, ampliador e pulsante na sua lentidão. Lembro-me de ler em “A Lentidão” de Milan Kundera, que o grau de lentidão é proporcional à intensidade da memória, enquanto o grau de velocidade é proporcional à do esquecimento. Na folha de sala, escrita pela curadora da exposição, Susana Ventura, está escrito: “É necessário resistir ao tempo que tudo devora e evitar o esquecimento”. [1] A primeira coisa que vejo, da curva da entrada, é um sol / medusa que me acena. Parece estar debaixo de água a nadar. Tem muitos raios / braços que reverberam pela parede, alongando-se e murmurando, não palavras mas vibrações, em pequenas oscilações talvez imaginárias, num estremecimento subtil, ondulante e sensual. Esqueço a realidade geométrica das formas e, sob a pequena luz azulada que incide sobre este desenho na parede, sou transportada para um lugar navegante, marinho. Ao fundo da parede, delicadamente iluminadas, encontro-me com duas pinturas que criam um ângulo recto entre si. Acolhem-se e falam-se, em silêncio. Uns pêlos que sobem, a quererem crescer, olham para umas estalactites que descem, sem nunca cair. Uma caverna luminosa. A ver tudo está um pirilampo humano a descer em loop de um céu de estrelas. Uma luz que cai à terra — adivinho-lhe o voo vertiginoso e anunciador. “Melusinas românticas saídas das águas do lago, Melusinas símbolos de alquimia que ajudam a formular os sonhos da pedra de que devem sair os princípios da vida." [2] Agora, a grande admiradora da pequena pedra sou eu. Somos todos. Aqui está uma pintura que nos transporta para o universo do pequeno, do silêncio, do respeito, da vénia, da atenção. Temos de nos curvar para a observar porque está colocada ao nível dos nossos joelhos. Tudo está minuciosamente montado para nos levar a fazer estes movimentos, para também nós sermos uma coreografia. Um dedo humano aponta, como quem quer chamar-nos à atenção, para uns pequenos fósseis. Uma pedra. Um osso. Um vestígio. O mistério da formação lenta e contínua. Porque o pequeno é o centro da força primitiva, o minúsculo é a morada da grandeza. Estou a testemunhar a sabedoria das pedras. Seres que vivem, adormecidos na sua forma, que são as lembranças imóveis do mundo. Temos mesmo de olhar para baixo se quisermos ver esta pintura — aprender a olhar a terra. Passeio e contorno as sombras e silhuetas das esculturas de metal que estão no meio da sala. Os espaços entre si, os interstícios abertos e desimpedidos, têm uma cumplicidade e uma correspondência delicadas. Para o artista foi interessante trabalhar com outros medias que não apenas a pintura bidimensional, na exploração de imagens e situações pendentes, que encontraram, neste convite à exposição e neste espaço, uma casa para poderem estar e existir em conjunto. A profundidade do espaço e o jogo de luz, nesta performatividade em potência, neste cenário que também é casa e conforto silencioso, oferece-me, generosamente, uma dimensão sensorial e imersiva. Estou a entrar num plano maior do que aquele que vejo. Liberto-me do peso das coisas e pressinto um horizonte mais amplo, mais vasto, que se alarga e se estende para fora destas paredes — porque não estou só a assistir. Sou parte. Entro na pele das coisas, percorro a pele das coisas. Esta exposição é epidérmica. É pele com pele. Estalactites que emergem ou que derretem, nessa tensão de sombras — nunca saberemos se estão a cair ou a voar. Numa delas, um pequeno círculo pintado olha para uma outra escultura na parede, esse “círculo mágico, olho de todo o ser; surgindo na calma de um sonho”. [3] Ao pêndulo hirto e liso, agarram-se os caracóis ondulantes. Começam a acumular-se na parte de baixo, como se a gravidade os trouxesse de volta à terra, embora estejam parados no tempo. No trabalho de vídeo, “dois corpos inventam um outro tempo ainda, ínfimas variações de velocidade contrariam e baralham os ponteiros do relógio - tic tac tic tac - e os braços soltam-se como asas e rodopiam” [4] — numa espiral viva de continuidade e retrocesso. O eterno retorno, o cíclico perpétuo.
Ao fundo, mas não longe, ouço o eco de um uivo. Só agora me sento, calmamente, a assistir ao bailado dos caracóis. Os caracóis, que sabem que é preciso viver para construir a sua casa e não construir a sua casa para viver nela; os caracóis que também sabem que a casa cresce na mesma medida em que cresce o corpo que a habita. Vão entrando e saindo, ao sabor da luz que vai mudando, numa dança lenta de recolhimento e expansão. Revelam-se numa sensualidade escondida e envolvente que me surpreendeu. Tiago percorre o poema da lentidão, percorre a espera do espectáculo - porque “o único espectáculo é o da espera” [5] . Sabe que não se deve explicar demasiado cedo, sabe que quem aceita os pequenos espantos prepara-se para imaginar os grandes, e que, atrás das coisas o seu brilho cresce, sem rumor. Esta exposição é a possibilidade de começo desse espectáculo de nada, que é tudo, desse espectáculo do pequeno — que não é um engano, não é um detalhe — é a descoberta do mundo. É a celebração da espiral — da hélice que somos — e de tudo o que deixamos entrar. Ou sair. É um convite à desaceleração do coração, ao abrandamento do ser. Um convite a compreendermos finalmente o murmúrio que não diz nada; a descobrirmos que o movimento lento é curativo. Esta exposição é, no seu ritmo particular e irradiante, uma lenta flecha de beleza. Relembro um texto de José Tolentino Mendonça, do qual não me recordo o nome, em que ele contava uma história sobre a lentidão. Nos dias mais atarefados, quando o telefone tocava alto e vezes demais e havia inumeráveis coisas para fazer, Lourdes Castro e o seu marido, Manuel Zimbro, começavam a andar teatralmente em câmara lenta pela casa. Esse gesto reconciliava-os com o tempo. Essa imagem ressoou em mim durante muito tempo e voltou ao meu encontro com esta exposição. Nas curvas que a lentidão nos proporciona (a velocidade segue sempre em linha recta) podemos ousar caminhos que, de outra forma, não conseguiríamos avistar. Podemos desenhar um andar diferente, um outro movimento — e é nessas pausas, nesses hiatos calados, que talvez possamos ouvir a nossa própria voz: “(...) e eu estou aqui junto às águas porque, nesse espaço entre espaços, onde nenhuma coisa fala, eu sou o que essa coisa diz.” [6] Reaprender o desvio como passagem — e deixar o corpo malear-se, aceitando uma geometria curva, não como rodeio, mas num pacto com o tempo. Com o corpo convidado a abrir(-se) para dentro, podemos vislumbrar o interior das coisas, o seu murmúrio, e viajar até ao outro lado da noite.
Nasceu em Lisboa, em 1996, cidade onde vive e trabalha. Licenciou-se em Ciências da Cultura e da Comunicação, na Faculdade de Letras. Realizou uma Pós- Gradução em Curadoria de Arte na Nova FCSH, um curso de Estética na SNBA, e está neste momento a realizar o Mestrado em Práticas Tipográficas e Editoriais Contemporâneas na FBAUL.
Notas: [1] Citação de Susana Ventura, retirada da folha de sala da exposição. [2] Gaston Bachelard in A Poética do Espaço, São Paulo, Brasil: Martins Fontes, 1996 ,p. 268 [3] Gaston Bachelard in A Poética do Devaneio, São Paulo, Brasil: Martins Fontes, 1996, p. 177 [4] Citação de Susana Ventura, retirada da folha de sala da exposição. [5] Título da exposição de Tiago Baptista patente na Galeria 3+1 Arte Contemporânea de 14 de Janeiro a 5 de Março de 2022 [6] Denis Johnson in Haverá sempre um lento alfabeto de chuva, Cutelo, 2022, p. 50 ![]()
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