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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Montanha de Urze e Esteva (2022). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Montanha de Urze e Esteva (2022). © Cláudia Handem


Maria Capelo, Série Montanha de urze e esteva (2022). Tinta-da-china sobre papel; 22,5x34 cm.


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Obra Sem Título (2024). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Obra Sem Título (2024). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Vermelho Fulvo (2023). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Vermelho Fulvo (2023). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Vermelho Fulvo (2023). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Vermelho Fulvo (2023). © Cláudia Handem


Vista da exposição de Maria Capelo, A noite de todos os dias, Ala da frente, 2024: Série Vermelho Fulvo (2023). © Cláudia Handem


Maria Capelo, Série Vermelho fulvo (2023). Tinta-da-china sobre papel; 22,5x34 cm.

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ARQUIVO:


MARIA CAPELO

A NOITE DE TODOS OS DIAS




GALERIA MUNICIPAL ALA DA FRENTE
R. Adriano Pinto Basto 79
4760-114 Vila Nova de Famalicão

08 JUN - 04 OUT 2024


 

 

Começando pelo fim: a publicação que surge no âmbito da exposição de Maria Capelo na Ala da Frente - compromisso que se cumpre em todas as exposições organizadas pela instituição, com curadoria de António Gonçalves – é um ensaio que inclui parte das obras expostas acompanhadas por excertos selecionados por Pedro Paiva. Os excertos provêm de três obras distintas: Cosmos (1965) de Witold Gombrowicz, Dias da Noite (1970) de Silvina Ocampo, e Em Baixo (1944) de Leonora Carrington. Antes que a curiosidade sobre estas obras e autores faça com que a exposição (e o texto) extravase para o campo da literatura e nos faça perdemo-nos por lá, a reunião intercalada dos textos propõe uma única história, fazendo ver as paisagens de Maria como prováveis cenários da ação narrativa.

Prováveis pois a ficção entre as palavras e as imagens é de uma indagadora verosimilhança: “pinheiros mansos e valados, pinheiros bravos e casas, erva brava e relvados, um fosso, carreiros (...) tudo brilhava ao sol, mas em negro, o negro das árvores, o negro da terra, o negro das plantas, era tudo mais negro que outra coisa.” [1] Embrenhados no enredo literário, apreendemos aspetos do trabalho de Capelo sob a descrição de uma forma, olhar, sensação: a bizarria e o mistério de uma natureza (terrestre e humana) que se afigura fantástica, com tudo o que tem de sinistro e belo. Mas sem serem ilustrativos um do outro, imagem e texto funcionam como uma ponte entre a ambiguidade de um lugar selvagem e a de um lugar domado que à obra de Maria Capelo pertencem. Ver esta exposição à luz destas referências é uma experiência enriquecedora. No entanto, independentemente de se ter acesso ao livro, os seus desenhos são autónomos de qualquer descrição literária uma vez que “são lugares onde as palavras existem como silêncio” [2].

O seu trabalho no âmbito da paisagem tem já um percurso consistente e insistente, caracterizado por um gesto minimal e austero que parte da observação direta e da memória de lugares que lhe são familiares: montanhas, serras, penhascos, colinas, vales, clareiras, re-ordenando continuamente os elementos que os compõem: a terra (terreno, vegetação, árvore), o ar (vento, nuvem, céu), a água (chuva, rio), o fogo (mina, explosão, fogueira). Maria representa estes espaços de uma forma obstinada e duradoura, podendo repetir a mesma imagem durante anos e anos, e recusando (paradoxalmente) a fixação “como se o visto nunca tivesse existido, como se só existisse no ato e no momento de criar” [3]. O processo de recomeçar a cada desenho ativa uma abstração que deixa ultrapassada a mera geografia das coordenadas. E, por isso, o lugar é já outro. É cosa mentale.

Nesta exposição, apresenta duas séries de desenhos de pequena escala e um trabalho maior a solo, feitos a tinta-da-china sobre papel oriental. À semelhança de exposições anteriores como “Vem a chuva e vem o vento” (CAV, 2023) ou “O dia já fecha as portas” (Maat, 2023), o formato de pequena escala permite uma disposição que favorece o panorama cinemático, capaz de aludir simultâneamente ao tempo geológico da paisagem, como ao da observação e da realização do desenho.

 

Maria Capelo, Série Montanha de urze e esteva (2022). Tinta-da-china sobre papel; 22,5x34 cm.

 

Vinte e dois desenhos constituem Montanha de urze e esteva (2022), e retratam um cume do mesmo ponto de vista - um equivalente da St. Victorie de Cézanne? -, invadida por traços negros que abrem e fecham a luz solar que o tom do papel parece reter (“espaço pintalgado que ora avançava ora se ocultava, que se apaziguava, que premia, sei lá?, que se chocava, que se entreabria…” [4]). O próprio desenho oferece a qualidade tátil de uma paisagem mutante como se de um dorso de animal se tratasse. (“Oiço às vezes o ranger dos ramos e parece que sinto um cheiro a fera (...) e então deito-me de bruços sobre a terra, beijo-a (...)” [5]).

Vermelho fulvo (2023) é composta por vinte e três registos de árvores, espaçados num início em diagonal, lembrando os pingos de chuva num dia ventoso. Cada desenho varia em grisalha, intercalando o negro, o cinza e o amarelo em atmosferas mais ou menos carregadas ou límpidas. As árvores exibem uma riqueza técnico-formal na relação contorno/mancha, cheio/vazio, fundo/figura, formato/composição (existe uma predisposição da árvore à esquerda ou ao centro); e de conteúdo - árvores despidas ou cheias de folhagem, estáticas ou em movimento, iluminadas pelo sol ou sombreadas pelas nuvens. Seja qual for o desenho, as árvores nunca estão tranquilas: são animadas por um estado violento (a forma em V assim o sugere), espinhoso, incendiário, tentacular, trovejante, protetoras de si próprias. Estas árvores exemplificam bem o que Miguel von Hafe Pérez refere sobre a não-empatia que as paisagens de Maria estabelecem no seu imediato [6]. Elas provocam um afastamento por evocarem um lado duro da natureza, pouco romanceado na aspereza do traço. Não há cor (a não ser nos títulos das obras) e a figura humana é inexistente, indiciada porventura nos caminhos rasgados no terreno árido, nos quais as árvores são marcos. No entanto, o peso da humanidade tem aqui uma inevitável força, como a sufocante trepadeira de que fala Ocampo. Face ao atual enquadramento ambiental e climático do planeta, esta mostra sublinha o permanente questionamento sobre a nossa concepção e inscrição no mundo natural e artificial. (Para quem lê os excertos do livro, sente essa ferida e essa loucura de quem castiga e sofre ao mesmo tempo). No desenho de Maria Capelo, a relação com a paisagem é, assim, arriscada: oferece(-nos) o risco “em forma de desenhos que representa(va)m essas tantas soluções para os problemas cósmicos” [7].

 

Maria Capelo, Série Vermelho fulvo (2023). Tinta-da-china sobre papel; 22,5x34 cm.

 

A sua obra ergue-se, ela própria, de uma montanha de referências literárias, cinematográficas e fotográficas, que são alvo de um manejo que se imiscui com a experiência empírica e pessoal do lugar. Um processo de acumulação e montagem (muito presente nos seus cadernos de trabalho) que acaba por se ver refletido na qualidade fosca do seu traço, um rastro do que resta ainda por ver.

Sem título (2024), ao contrário das peças anteriores, coloca o espetador na vertigem de enfrentar finalmente “o escuro, ou melhor, múltiplas variedades de escuro, que confundiam tudo (...)” [8]. É um desenho que nos coloca dentro do bosque e do vórtice do temporal, para se distinguir os vestígios do ainda dia. É notável como a noite e as trevas se vão materializando na sobreposição das pinceladas, num rasurar de trama muito próximo do da gravura. É o tipo de imagem que constitui um freio, um obstáculo à libertação que tanto desejamos atingir e da qual, de alguma maneira, nos sentimos privados.

Finalizo então com o princípio: o título “A noite de todos os dias” coloca uma velatura triste sobre o que deveria ser luminoso e alegre. Note-se que esta ‘noite’, face à pluralidade dos dias, é singular: incapaz de se contar (não tem um equivalente ao “diário”), ela está mais próxima do espírito do que do corpo. Ocorre-me um pensamento novo: há uma feminilidade nestes desenhos muito particular que, mais que os motivos da Natureza-Mãe-Maria, os tornam ferozes e ríspidos, doridos e sós, peregrinos; desenhos-mártir que resistem, prestes a consumirem-se.

 

 

Cláudia Handem
(n. 1992, Murtosa) Licenciada e mestre em Arquitetura pela Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, e licenciada em Artes Plásticas - Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Articula a atividade laboral na área da arquitetura e design de interiores, com a prática artística no campo do desenho e da pintura. Escreve, de forma independente, sobre exposições de arte.

 

 

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Notas

[1] Excerto de Cosmos de Witold Gombrowicz, transcrito em Maria Capelo - A noite de todos os dias, Ala da frente - Documenta, 2024.
[2] João Pinharanda, Landscape, word and silence. Disponível aqui.
[3] Ibid.
[4] Excerto de Cosmos de Witold Gombrowicz, transcrito em Maria Capelo - A noite de todos os dias, Ala da frente - Documenta, 2024.
[5] Excerto de Dias da Noite de Silvina Ocampo, transcrito em Maria Capelo - A noite de todos os dias, Ala da frente - Documenta, 2024.
[6] Miguel von Hafe Perez sobre “Vem a chuva e vem o vento”, CAV, 2023. Disponível aqui.
[7] Excerto de Em Baixo de Leonora Carrington, transcrito em Maria Capelo - A noite de todos os dias, Ala da frente - Documenta, 2024.
[8] Excerto de Cosmos de Witold Gombrowicz, transcrito em Maria Capelo - A noite de todos os dias, Ala da frente - Documenta, 2024.

 

 

 



CLÃUDIA HANDEM