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RITA GASPAR VIEIRADESARRUMADAGALERIA BELO-GALSTERER Rua Castilho 71 r/c esq 1250-068 Lisboa 07 MAI - 25 SET 2021
Em Desarrumada, de Rita Gaspar Vieira, apresenta-se a matéria em “estado bruto”. Evidencia-se a materialidade da obra de arte. A grandeza dos acabamentos é despojada para se manifestarem na organicidade das matérias do papel e do desenho. O lugar e a criação da artista expressam-se no encontro deste gesto, cuja valorização é exaltada pela ação e processo. Rita Gaspar Vieira explora a plasticidade da matéria, enquanto “lugar habitado”. Espelha a memória arqueológica do ser, individual e coletivo. Entre o tempo e espaço, as obras são apresentadas por camadas finas sobrepostas das várias matérias, cuja sedentarização nos reporta à experiência vivencial da matéria, numa transformação que nos é dada através do tempo. Desarrumada lembra-nos precisamente essa sátira da vida quotidiana, em que a artista percorre repetidamente a materialidade orgânica de todas as coisas, numa vivência do processo de cada material. Através destas obras, a artista explora o movimento e o tempo no espaço, tal como Pedro Calapez os faz manifestar no gesto. Ambos os artistas coexistem no espaço-tempo da Galeria Belo-Galsterer. Segundo Alda Galsterer (2021): Desarrumada, água tão importante no trabalho da artista, que transmite vida à matéria e que lhe permite individualizar-se e introduzir o ‘acaso’, fator tão importante do processo, e torná-lo parte integrante do trabalho criativo de Rita Gaspar Vieira. As obras da artista transmutam-se através da matéria informe, ganham uma vida própria. A partir delas, nasce a mutação da matéria, decompondo-se no tempo e no espaço. Desta forma, a artista enfatiza a experiência estética análoga ao que se outrora se entendeu por “painting without paint”, na obra de Alberto Burri, uma das quais intitulada de “Muffe”, em que a matéria e a textura são transmutadas em pequenos detalhes de cor na sobreposição de materiais pobres. Rita Gaspar Vieira manifesta essa dimensão espaciotemporal, cujas formas orgânicas emergem do processo de manufatura do material, enquanto se dá a transmutação do papel. Embora esta dicotomia entre a origem da manufatura e o “lugar habitado” anime a experiência estética da artista, não se encontra no “trauma da pintura”, como foi referido em Burri por Emily Braun. Lembra-nos mais aquilo a que Lucy Lippard e John Chander (1968) chamaram de “desmaterialização” da obra de arte, sempre que nela ecoa o “tempo” de John Cage ou a “satori” do budismo. Segundo Richard Maurice: A consciousness of the cosmos, that is, of the life and order of the universe (…) illumination which alone would place the individual on a new plane of existence – would make him almost a member of a new species. Esta procura da mutação da matéria que transgride o pensamento estético prevalece no gesto e no processo da artista mais do que a ideia de um objeto enquanto obra de arte. Rita Gaspar Vieira explora as matérias como se fossem paisagens em papel, como breves realidades de memórias e arquivos de artista, numa metáfora do pensamento contemporâneo do que se entente por “lugar”. Do tosco material e da irregularidade da matéria, permanece um mundo sombrio do feminino artístico, cuja ordem ecológica e orgânica sugere como que uma enigmática imaginação fértil do inconsciente coletivo e individual da artista. Da escala íntima, sobressaem pequenos detalhes de cor nas pinturas. Parte da investigação do processo e da génese da criação universal para o “lugar”. O atelier como lugar emerge da prática da artista. A atmosfera experimental, o pó e os detritos rasgam o espaço como memórias transitórias na superfície compósita dos papéis e dos vários processos de criação. Do visível passa-se para o invisível da matéria, cuja transitividade da vida advém da compreensão da conceção espaciotemporal. Transpõe-se, assim, ao fluxo da vida e da morte, do processo e de criação de uma obra de arte, cuja conceção artística se manifesta enquanto processo alquímico da metamorfose da matéria. Assim, a matéria revela-se “operação do tempo”, como se transladasse através dela mesma para além da vida compositiva da obra. A experiência do “lugar habitado” de Rita Gaspar Vieira restabelece o espaço arqueológico do artista, criando, desta forma, um elo antropológico entre o passado e o presente. Uma memória. Um ritual da artista na génese da criação. A obra apresenta-se quase como efémera, aludindo às ações temporais da vivência artística. As intervenções do gesto, do ritmo e do movimento da mão para o material metamorfoseiam organicamente a forma do objeto no espaço. A mão e o gesto passam a ser um veículo da identidade individual e coletiva. A matéria como socius. Uma matéria de memória-social. O lugar sente-se. Encontra-se no imaginário. A experiência vivencial vive-se enquanto transformação. O ritual da ação repete-se infinitamente. Estabelece, assim, a artista a conexão com o passado. Através da memória, a artista reencontra o mito na era contemporânea. There are few such purely ‘local’ mythical visions in the world of modern art. There may be, rather, a fruitful play between ‘local’ and ‘trans-local’ dimensions of imaginary, myth and meaning, or intimations of the sort of deep, hermetic myth structure which can encourage the psyche to grow towards various states of mythopoeic and individual consciousness. (Tucker, 1992, p. 76)
Joana Consiglieri
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